quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Socorro, não estou sentindo nada...

Por Daniela Carvalho


Eu quero que você imagine. Eu estava andando na calçada, aquele tipo de calçada que têm vários blocos de concreto, um na frente do outro, separados por um pouquinho de grama.
Quando dei por mim comecei a caminhar, um pé em frente ao outro, sincronizado, de bloco em bloco, e isso se tornou um objetivo a tal ponto de eu passar na frente do lugar onde deveria parar e não ver.
Só depois de algum tempo – acho que foi quando encontrei algo no caminho, uma árvore, pedra ou os blocos terminaram – que interrompi a minha caminhada. Pra ser honesta, fui interrompida.

Para onde eu estava indo? O que aconteceria se algo não estivesse no meio do meu caminho e me fizesse lembrar que não era por ali que deveria seguir, mas deveria voltar e começar a caminhar de novo.
Agora é um novo cenário. Veja, eu não estou mais na calçada.
Estou caminhando por numa rua qualquer, sob o sol quente, carregando algumas sacolas plásticas, dentro delas tem peixe, verdura, um livro...
Sem eira e nem beira, com a mente vagando de um lugar para o outro, até ver o reflexo de um poste na rua, um reflexo que formava uma linha reta imaginária.  
Eu comecei a caminhar por essa linha, um pé na frente do outro, às vezes quase perdendo o equilíbrio, mas me esforçando muito para não cair ou sair daquele caminho formado pelo reflexo.
Quanto tempo isso durou? Quantos lugares bonitos, pessoas interessantes eu deixei de me relacionar enquanto observava o meu próprio pé seguindo um caminho imaginário?
A luz que criou o reflexo do poste sobre a rua sumiria em algumas horas, assim como o caminho refletido na rua, que testou o meu equilíbrio e me fez esquecer tudo ao redor.
O que eu perdi? Nunca vou saber por que estava olhando para baixo, para os meus pés, para um caminho imaginário, que não tem nenhuma importância agora.
Por que escrevo tudo isso? Talvez para entender o que aconteceu com alguns amigos que decidiram partir por conta própria. Como dizem por aí, eles se suicidaram.
Eu conversei com uma amiga que chegou muito perto de fazer o mesmo.
Na minha ignorância, falei que o suicídio era uma perda total da esperança.
Ela me corrigiu e disse que quem se suicida, ao contrário do que eu pensava, tem muita vontade de viver, mas está em surto.
No surto a pessoa já não sente nada: dor ou empatia pela dor do outro.
Pensei:
Será que o suicida simplesmente segue um caminho imaginário, como o reflexo do poste na rua e não percebe que numa questão de tempo tudo vai mudar e voltar a ser como antes?
Será que o suicida segue um caminho reto, indo de um bloco ao outro, e não percebe o momento de parar?
Na hora que a minha amiga explicou que, durante o surto, o suicida não sente dor, eu me lembrei de uma música:
“Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar. Nem pra rir.…”.
Essa música que tem um ritmo tão gostoso terá sido feita em um momento de surto?
Coisa da minha cabeça. Mas, na hora fez sentido.
E me fez refletir em quantas vezes eu achei engraçado ou não prestei atenção em uma pessoa que precisava ser levada mais a sério.
A maior parte das pessoas está sem paciência para o outro.
Caminha na rua, absorta nos seus pensamentos (nem sempre algo realmente importante. Pode ser qualquer coisa: fazer a unha, comprar comida para o gato, escolher um novo tecido pra almofada, etc...) e torce para não encontrar com um conhecido.
Quando encontra, pergunta se o outro está bem, por educação, mas no fundo torcendo para que não queira se aproximar e falar sobre o que realmente está sentindo.
É sempre melhor pensar que o outro está bem, mesmo quando vê os seus olhos inchados, com olheiras e roupas desmazeladas.
Mesmo quando sabe que saiu de casa porque se separou do marido ou ainda está sofrendo o luto pela morte de alguém querido.
- Oi, tudo bem?
- Tudo.
Isso basta para seguir em paz com a sua vida superficial. Por que teria que ser diferente?  
“Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar. Nem pra rir.…”.
Pode ser apenas uma música bonita, mas também pode ser realmente um pedido de ajuda!
Eu não vejo o suicídio como uma morte mais terrível do que qualquer outra. Como morreu?
- Enfarte, afogamento, caiu e bateu a cabeça, overdose, câncer, suicídio.
Morreu, morreu. Como? Sinceramente, pouco importa como.
Talvez sirva apenas para quem adora fazer fofoca de mau gosto. Só serve mesmo pra isso.
Contesto muito qualquer teoria religiosa que insiste em colocar o suicida no rol das pessoas que vão “pagar pelo seu pecado”, neste caso, unicamente, decidir morrer.
Não aceito isso. Acho que se não fosse para sermos livres e fazermos as nossas escolhas, Deus não teria nos dado o livre arbítrio.
Enfim, colocar o suicida como pecador – junto com estupradores, ladrões de farmácias populares, corruptos que desviam dinheiro da merenda, religiosos falastrões, isso eu nunca vou aceitar.
Consigo entender que uma pessoa não queira mais viver.
Se existem tantas pessoas dispostas a viver sob todas as circunstâncias porque não existiriam pessoas dispostas a morrer sob todas as circunstâncias?
Eu fico mais muito incomodada quando penso que isso possa não ter sido uma escolha dela e sim resultado de um surto psicótico, uma doença mental, como explicou a minha amiga.
Pensar assim sempre dá um gosto amargo na boca, como se fosse possível ter feito alguma coisa para evitar que o suicida fosse até o fim.  
Prefiro pensar que tenha sido uma escolha. Viver ou Morrer? Morrer.
Mas, vamos supor que a minha amiga esteja certa, além de ser uma pessoa com mais experiência no assunto, eu a respeito acima de tudo.
Então, desde a nossa conversa, eu tenho pensando sobre isso.
No momento de crise que o país atravessa é comum encontrarmos pessoas se queixando de falta de dinheiro, por se sentirem perdidas e sem esperança, se todos que falam isso se suicidassem faltaria espaço embaixo da terra.
Mas, vamos ser mais duros. Afinal, conseguimos ser grandes juízes da vida alheia.  
Quem mora na mesma casa com alguém que está desesperado, se sente sozinho e vem sendo perseguido por agiotas violentos que desejam seu corpo, não poderia prever ou até impedir o suicídio?  
Conversar mais? Dar mais amor?
Se você também se faz essa pergunta, cuidado com a sua conclusão. Não se apresse na busca pela verdade. Não julgue sem conhecimento de causa.
Não entrem na casa dos outros, deitem na cama, comam em suas mesas, sem terem sido convidados e saiam falando que estava tudo uma droga. Isso é extremamente desrespeitoso.
Por causa de pensamentos iguais a esses, cometem-se uma grande injustiça, que é culpar os familiares e os amigos do suicida.
Os familiares e amigos também têm seus problemas, suas dores e feridas e, de uma hora para outra, se tornam o foco de rodinhas de discussões, onde pessoas que mal conhecem demonstram serem PHDs em suas vidas.
Como se não bastassem sofrer pela perda de uma pessoa amada, muitos familiares se sentem culpados e até envergonhados. Do que? Não sabem exatamente, mas preferem se calar.
Se lhes perguntam: - Morreu, como?
Respondem: - Enfartou.
Por causa de julgamentos apressados e maldosos, de preconceitos e condenações, o suicídio se tornou um tabu.
Há um silêncio sobre o assunto que só reflete o quanto nossa sociedade está doente.
Se eu fosse médica, só pra começar o debate, receitaria doses cavalares de respeito e afeto,  por tempo indeterminado.  
E pra já.










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